sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Hoje, o vi



No balançar nauseante do ônibus, lá estavam meus pensamentos se misturando às paisagens que via da janela. Ele estava no cheiro do vento que me atravessava. O ônibus, vazio, levava a mim e mais duas pessoas: uma senhora e um senhor. Os dois olhavam para frente. Eu, mais atrás, olhava para a rua e já sabia que, no caminho, lembraria dos percursos que fazíamos, do riso singular, do silêncio gritante... Sem ele por perto, o que restava era o mundo com ele. Havia três anos que não o via e não sabia exatamente se continuava o mesmo, se tinha deixado a barba crescer, se em vez de usar óculos de grau, tinha colocado lentes, se ainda lembrava de mim... Ao chegar no destino, refiz os nossos passos, relembrei dos temas que conversávamos - já velhos e sem motivos para recordações. As pessoas que nos viam ali também não estavam. No entanto, a tarde explodia em seu ardente mês de setembro. Sem alarde, ele aparece. Depois de três longos anos sem notícias, lá estava ele: usando óculos, vestido modestamente com suas roupas invisíveis e um jeito peculiar de ser: o seu. Cogitei de chamá-lo, corri para perto. Ele havia entrado numa loja de produtos infantis. Será pai? Será mãe? Não quis importuná-lo. Já não faz sentido. Só eu o vivo. Ele morreu.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Isla Negra - o nome escolhido por Don Pablo para batizar seu recanto preferido

(Placa fixada numa das esquinas que dão acesso à Casa de Pablo Neruda)

Isla Negra fica a mais ou menos uma hora de Santiago (capital do Chile). Até chegar à cidade mais querida do poeta Neruda percorre-se uma imensidão de beleza, seja ela revestida em belos caminhos, vinhas ou montanhas. A beleza desconcertante, no entanto, está em Algarrobo, cidade vizinha, banhada por um mar lindamente decorado com um pôr do sol cinematográfico e um brilho que ofusca qualquer coração apaixonado por tudo que remeta à natureza. A melhor parte: os moradores da região preservam isso e não contaminam sua praia com plásticos ou lixo.

Voltando à cidade do poeta, sim a cidade é do poeta mesmo. Basta adentrar suas ruelas para ver que tudo está diretamente ligado à Neruda. O nome do mercadinho: "Mercadinho Pablo Neruda" (tradução literal); o nome da escolinha: "Escola Infantil Poeta Pablo Neruda". Sem falar dos restaurantes, estacionamentos, hospitais, etc. Parece loucura, mas é verdade. Lá, as pessoas amam Neruda e também trabalham e se sustentam pela fama do poeta. A própria cidade foi "criada" por ele que batizou-a como "Isla Negra", influenciado pelo belíssimo mar azul e suas rochas escuras. 

Apaixonado pelo mar, Neruda decidiu construir uma casa, na qual pudesse imaginar estar num navio. Desta forma, a casa de Neruda em Isla Negra é toda feita em forma de barco e está localizada estrategicamente em frente ao mar. O teto é baixo e arredondado, as escadas são estreitas; em sua biblioteca particular há inúmeras figuras mitológicas (esculturas de santas e deusas que, segundo os marinheiros, os protegiam durante as longas viagens) afixadas no teto; todas viradas para a janela de vidro, como se estivessem olhando para o mar. O poeta era fascinado pelas histórias contadas por marinheiros e piratas; preservava cada significado que os segredos do mar proporcionavam a estes homens. O curioso é que, mesmo com tamanha paixão, o poeta não sabia nadar.

(Casa de Pablo Neruda mantida por meio da Fundação Pablo Neruda)

 (Painel do poeta Neruda exposto na entrada de sua casa em Isla Negra)
 (Casa do poeta Neruda localizada em Isla Negra)
 (Isla Negra e sua vegetação de clima subtropical)
 (Espécie de mausoléu de dona Matilde e Neruda - o corpo do poeta fora exumado...)
 (Mar de Isla Negra agitado. O nome da cidade foi batizado pelo poeta Neruda...)
 (Coleção de borboletas de Neruda. As espécias maiores vieram da África)
 (Coleção de garrafas de Neruda. Os barcos representam o fascínio do poeta pelo mar)
(A beleza do lugar e o amor do poeta fizeram de Isla Negra um lugar mágico)

(Escrivaninha especial do poeta. No porta-retrato está a imagem de Baudelaire)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

POESIA


Santiago




Santiago, capital do Chile, foi o meu destino. Lá, iria passar uns dos melhores dias da minha vida. Sim, estava acompanhada de alguém muito especial. Fora isso, a cidade toda é um conjunto arquitetônico de belas paisagens e monumentos, alguns grandiosos e impactantes. Como brasileira, me surpreendeu o silêncio do trânsito, as diversas e completas ciclovias e o surpreendente pano de fundo: a cordilheira dos Andes.

É diferente conhecer Santiago como cidade turística quando seu guia é um sociólogo chileno que mora em Santiago desde sempre. Álvaro me mostrou o que considerava bonito e interessante na cidade e optou por me levar em lugares que não remetessem à ideia de consumo. Visitamos praças, restaurantes e bares ao ar livre, livrarias e uma casa de tango (El Cachafaz), onde pude realizar um sonho que nem sequer tinha feito: dançar tango de verdade.


El Cachafaz é um café-concert localizado numa espécie de "shopping lifestyle" chamado Bella Vista que fica no bairro Providência. Além de aulas de tango, milonga, salsa e outros tipos de dança, o lugar oferece pista de dança aberta depois de 22h e restaurante com pratos especializados na culinária chilena. Em alguns dias da semana há shows especiais e apresentação teatral. O lugar é bem agradável. Recomendo.

Percebi que os chilenos gostam de tango, milonga e salsa. É basicamente os estilos de música que fazem parte do repertório cultural do país. Então dançar tango (dança mais tradicional) significa dizer que você se deixa levar pela beleza triste do sofrimento amoroso e ser impactado por ele, mas ao mesmo tempo o conduz com sensualidade e firmeza.


Esqueci de mencionar que as diversas livrarias reunidas no centro da cidade é algo que não se costuma ver no Brasil e, por isso, também foi algo que me chamou atenção. Não só pela quantidade, mas pelo formato e também pela acessibilidade. Havia livrarias de todas as formas, cada uma mais convidativa que outra. Nem preciso dizer que tomamos uma tarde inteira para visitar algumas e comprar alguns livros e jornais. A experiência de algumas horas não me satisfez. Quando voltar, com certeza farei uma visita mais prolongada.


Nas livrarias, procurava por livros de Jesús Martín-Barbero, mas tive uma surpresa: os livros dele estavam esgotados! Juro mesmo. Questionei o porquê dos livros do autor supracitado terem praticamente sumido das prateleiras; a resposta: "é um dos autores mais lidos pelos pesquisadores e estudantes de comunicação da cidade". Surpresa ao dobro: não sabia que o Barbero era tão procurado assim. De livraria em livraria, encontro um livro que talvez me ajude a entender melhor alguns pontos do universo comunicacional no qual vivemos. O livro se chama "Los ejercicios del ver - Hegemonía audiovisual y ficción televisiva".


Passar por Santiago é também entender o significado que o poeta mais conhecido, mais lido e recitado do Chile representa. Neruda não foi só uma voz ecoada nas mentes e almas sensíveis; foi um homem que, com sua grandeza, desafiou a ditadura e a si próprio. O poeta representa a liberdade, a dignidade, a coragem e a força das palavras e das atitudes dos chilenos. Não foi somente a representação intelectual do país. Foi, antes de tudo, um destemido e notável guerreiro.